História de Leiria

HISTÓRIA

Em l553, André de Resende descreveu na sua História da Antiguidade de Évora, a inscrição da sepultura de "Laberia Galla", descoberta na antiga igreja de Santo Estêvão, em Leiria, cujo paradeiro se desconhece - e assim nasceu a lenda da fundação da cidade, no século I da nossa era, com o nome de Laberia Galla Flaminia. De Collippo, a antiga cidade romana situada a cerca de oito quilómetros de Leiria, foram encontrados numerosos vestígios, entre os quais algumas lápides funerárias reutilizadas na construção do castelo, ostentando datas por vezes posteriores ao século II e nomes de origem celta. Porém, pouco ou nada se sabe de Leiria durante o período da ocupação sueva e visigoda: em 753 encontrava-se já na posse dos mouros sob a alçada de Córdova, em cujo domínio ficou até à Reconquista.

E aqui, de novo recomeça a lenda... Em 1135, D. Afonso Henriques preparava-se para tomar a cidade aos mouros quando, sobre dois pinheiros, ecoou com estrépito o gralhar dos corvos; tomando este sinal como bom augúrio, precipitam-se os cristãos sobre a fortaleza, arrasando-a. A história deste feito deu origem ao brasão de armas de Leiria - um castelo entre pinheiros encimados por dois corvos e duas estrelas de ouro ornando a parte superior do escudo. Logo aí o rei cristão mandou erguer uma igreja que, devido à sua implantação no cimo do penhasco, ficou conhecida com o nome de N.ª a S.ª da Penha.

O castelo, colocado sob a protecção de D. Paio Guterres, primeiro alcaide de Leiria, foi novamente tomado pelos mouros, em 1140, e logo reconquistado pelos cristãos, em 1142 - data em que Leiria recebeu o título de vila e o seu primeiro foral. A sua jurisdição civil ficaria, até ao reinado de D. Dinis, na dependência directa do alcaide - que habitava o alcácer ou alcáçova do castelo, - passando a religiosa à subordinação do eclesiástico do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, mediante a doação efectuada por volta de 1155; os privilégios dos Cónegos Regrantes sobre Leiria são confirmados por uma carta do bispo de Lisboa, D. Gilberto, pelo qual renuncia, em 1156, aos direitos episcopais que possuía na vila.

Após nova incursão dos mouros, em 1190, D. Sancho I mandou reedificar as muralhas da vila, à qual outorgou novo foral, em 13 de Abril de 1195: "Por quanto a graça de Deus por sua obra nos dá todas as coisas em abundância e sem retraimento. Eu, D. Sancho, por consentimento de Deus rei dos portugueses, juntamente com minha mulher, a rainha D. Dulce, e com meus filhos e filhas, estabelecemos o culto de Deus ao pé do castelo de Leiria, e demos esse lugar a vós, vassalos e criados, para o habitardes de juro e herdade" (J. Saraiva, Leiria, 1929). D. Afonso II confirmará os privilégios da vila, em 1214 e 1217, e D. Manuel conceder-lhe-á novo foral, em 1 de Maio de 1510.

Entretanto, crescia a vila de "Leirena"; no último quartel do século Xll (cerca de 1176), levantava-se já uma nova igreja que servia os habitantes instalados extramuros e junto à qual cresceu o mais antigo cemitério da cidade. Esta igreja, a de S. Pedro, é o único vestígio da arquitectura românica de Leiria; de uma só nave, com cobertura de madeira, e uma cabeceira abobadada composta por uma ábside e dois absidíolos, filia-se na escola românica de Coimbra, apresentando numerosas afinidades com a Igreja de S. Cristóvão daquela cidade. O portal, de volta perfeita, com uma série de arquivoltas repousando em colunas de capitéis esculpidos, integra-se num corpo rectangular saliente, encimado por cachorros evidenciando a imaginária medieval. Incorporada nos bens nacionais sujeitos à desamortização, seria avaliada em 100$00 réis; em 1896, E. Korrodi proporia a sua classificação como Monumento Nacional, após ter servido de teatro e armazém, vindo o seu restauro a efectuar-se entre 1933 e 1937, altura em que foi desentaipada a rosácea da empena primitiva.

Em meados do século, o castelo de Leiria foi entregue a D. Afonso III, o Bolonhês, pelo alcaide Martim Fernandes - "o que vendeu Leirea, muito tem que fez direito" -, contra as pretensões de D. Sancho II, tendo sido palco das famosas cortes de 1254, onde pela primeira vez tiveram assento os procuradores dos concelhos do Reino. Em 4 de Julho de 1300, D. Dinis doou a vila, já com a designação de "Leirea", à rainha D. Isabel; a estada demorada da corte em Leiria durante o seu reinado, de novo estimulou a fantasia em torno da Rainha Santa e do Rei poeta e dos seus lendários paços reais.

Na torre de menagem do castelo, exemplo típico da arquitectura militar portuguesa, com a sua planta rectangular e as espessas paredes coroadas de merlões, pode ainda ler-se parte da inscrição recolhida por frei António Brandão na Monarquia Lusitana e que documenta o início da sua construção: "Era de MCCCLXII annos foi esta torre começada VII dias de Maio e mandou-a fazer o mui nobre D. Dinis, Rey de Portugal e do Algarve, e foi acabada."

É natural que D. Dinis tivesse igualmente mandado reconstruir e ampliar a cerca da vila e suas torres de atalaia, nos socalcos da encosta - mas também não é de excluir a hipótese de que obras idênticas se tenham realizado no reinado de D. Fernando. Quanto à rainha D. Isabel, sabe-se que, depois que foi senhora da vila, "enobreceu muito o seu castello com edificações, fábricas de torres e aposentos, onde a Rainha Santa vivia ordinariamente. Tãbem pella devoção que tinha à Igreja Collegiada de N.ª S.ª da Penha do mesmo castello, a renovou, e ornou de ornamentos e peças ricas..." (Frei Nicolau de Santa Maria, Crónica dos Cónegos Regrantes).

Onde se localizavam os antigos Paços Reais? Ao longo do século XIX, muito se fantasiou sobre a formosíssima galeria da alcaçova do castelo, "construído como casa e museu pelo rei mais artista, mais poeta e mais sábio do seu tempo... " (Ramalho Ortigão). Actualmente, parece não restarem dúvidas de que a antiga residência real se situava no local onde se ergueram os Paços Episcopais, junto à Igreja de S. Pedro. A tese segundo a qual a Alcáçova de Leiria, assim como a Igreja da Penha, datavam do reinado de D. Dinis prevaleceu na sensibilidade de muitos escritores e, em 1929, era ainda defendida na obra inteligente de José Saraiva, leiriense convicto...

A obra grandiosa deixada por D. Dinis, o célebre Pinhal de Leiria - cerca de 2000 hectares de terras improdutivas conquistadas às areias do mar -, iniciada em 1290 sob a intendência de frei Martinho de Alcobaça, ilustra o papel de Leiria no centro das preocupações dionisinas: "A vós Alcaides, Alvazis, concelho e tabeliões de Leiria e todolos outros que esta carta virem, faço saber que eu mando fazer estas abertas no meu Paul Ulmar de Leiria, aquele que é para romper... porque entendo que é minha prol e da terra" (Fr. Fortunato, S. Boaventura, História Chronológica e Crítica da Real Abadia de Alcobaça, 1827).

Mas a estada de uma rainha de lenda e de um rei poeta em Leiria não deixou de gerar os seus mitos, como o da designação da aldeia de amor, no termo da vila; o episódio, narrado pelo conde de Sabugosa (e romanceado depois por Júlio Dantas), prende-se com os devaneios amorosos do rei e a terna complacência e dedicação da rainha pelo autor dos cantares à móda provençal, dos amores ausentes das cantigas de amigo e das flores de verde pino...

No reinado de D. Fernando, que em 1372 e 1376 reuniu cortes em Leiria, o senhorio da vila pertenceu sucessivamente à rainha D. Leonor e a seu irmão, o conde D. Gonçalo, sendo reintegrado nos bens da coroa por D. João I. Durante as lutas com Castela, no período da crise dinástica de 1383-1385, Fernão Lopes relata que o Mestre de Avis, encontrando-se em Leiria, "achou hi muitas cousas d'aprestamentos de casa que foram da rainha D. Leonor...". Após a vitória de Aljubarrota, o castelo de Leiria acolheu um prisioneiro ilustre, o cronista espanhol Pero Lopes Ayala, confiado ò guarda de Lourenço Martins, seu fiel alcaide.

Apenas no reinado de D. Duarte - que em 1438 convocou as cortes de Leiria para a discussão do resgate do infante D. Fernando, prisioneiro em Tanger -, surge mencionada a primeira referência aos Paços Reais da alcáçova do castelo; o documento, de 1437, nomeia "Thomas Rodrigues, carpinteiro, caseiro dos seus paços no castelo, com direito a morar neles e devendo reparar o que fosse preciso. "Obra do rei fundador, a parede nordeste do palácio ostenta ainda o brasão de armas de D. João I e o interior da Igreja de N.ª Sr.ª da Penha, contemporânea do Mosteiro da Batalha, revela a inequívoca iconografia do seu reinado. D. Manuel, que mandou fazer a sacristia e os vitrais da capela-mor, viria a conceder a mercê de uma sepultura na igreja ao alcaide Pedro Barba Alardo, descendente da família dos Alardos - detentores da alcaidaria-mor do castelo desde o reinado de D. Afonso V.

De D. Afonso Henriques a D. Manuel, o velho castelo aformoseou-se e enobreceu-se; a arquitectura civil e religiosa sobrepôs-se às preocupações de defesa militar da 1.ª dinastia. Desfeita a lenda dionisina, nem por isso a alcáçova real deixa de continuar a exercer o seu fascínio e evocar épocas mais remotas, com a sua loggia de arcaria assente em colunas geminadas e o seu indizível cunho árabe - como se a cidade fosse um grande pátio e a alpendurada o lugar privilegiado da sua contemplação.

(in Leiria, Lucília Verdelho da Costa)

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